No momento em que a Comissão
da Verdade dá seus primeiros passos e começam a surgir os primeiros conflitos e
sinais dos limites políticos impostos a seu trabalho, defrontamo-nos com uma
combinação de fatores que está gerando enorme desconforto nos grupos de pressão
que há décadas clamam finalmente escrever a verdadeira história que se passou
durante TODO o período de vigência da ditadura cívico-militar.
Está claro que somente a
pressão política poderá produzir um resultado minimamente satisfatório nos
marcos em que a comissão brasileira foi criada, embora com a certeza de que
ficará muito aquém das experiências vividas em outros países que implementaram
comissões semelhantes após findos seus regimes totalitários.
Se por um lado, tudo parece
apontar para um desfecho ‘não tão honroso’ para a nossa comissão nacional, de outra
parte parece haver uma lacuna sobre um período que envolve atores até aqui
praticamente esquecidos: os duros anos de 1972 a 1979, período em que a
ditadura já começava a apresentar seus primeiros sinais de enfraquecimento e
optando, não sem imensa pressão interna e externa, pela estratégia da ‘abertura’,
na certeza de que seus dias estavam contados.
Porque limito o período
entre 1972 a 79? Em 1972 o Exército conseguiu dobrar a ‘Guerrilha do Araguaia’,
assassinando a maior parte de seus militantes e prendendo os poucos
sobreviventes. Ao mesmo tempo eliminava as resistências nas cidades os últimos
resquícios dos grupos clandestinos da esquerda, já então totalmente inoperantes
diante da intensa repressão, sendo que a maior parte dos seus ‘altos quadros’
dirigentes já se encontrava no exterior na condição de exilados políticos, cada
qual percorrendo o calvário a seu modo, de forma individual ou em grupo.
Em 1979 é promulgada a Lei
da Anistia, ‘acordão’ das elites para viabilizar o retorno dos exilados
políticos e propiciar um ‘clima tolerável’ no cenário interno, face ao
abrandamento da repressão assassina e a estratégia da ‘abertura política’.
É justamente nesse período,
no qual grande parte da militância clandestina sobrevivente se encontrava sob a
guarda do exílio político no exterior, outra parte já morta e outra presa nas
cadeias dos órgãos de repressão, que se concentra uma imensa gama de atores que
dentro do país fomentaram a resistência e o combate à ditadura, não mais com as
conhecidas organizações clandestinas que tomaram em armas, mas em pequenos
grupos, embora muitos operando em regime de clandestinidade ou
semi-clandestinidade. O campo de atuação se resumia praticamente ao movimento
estudantil que, por suas características, apresentava melhores condições para a
juventude se organizar e tramitar as reivindicações educacionais, mas também as
consignas gerais como ‘liberdades democráticas’, ‘luta contra a carestia’,
‘liberdade de organização sindical’, ‘eleições gerais em todos os níveis’, e
outras reivindicações sócio-econômicas e culturais.
Os órgãos de repressão
voltavam-se ao controle desses ‘movimentos’ emergentes uma vez que as
conhecidas ‘organizações de esquerda revolucionária’ estavam praticamente
neutralizadas para efeito de mobilizações políticas no cenário interno.
Milhares de jovens
militantes, especialmente nas universidades se engajaram na dura tarefa de
resistência interna, com vistas a pressionar o regime para acelerar o processo
de democratização, o que não se deu sem muito sofrimento, mortes, pancadaria,
seqüelas de todo tipo, físicas ou psicológicas, da mesma forma como tinham sofrido
aquelas pessoas que já não se encontravam mais no país.
Milhares desses jovens
engajaram-se na campanha pela democratização e pela anistia política,
enfrentaram bravamente a policia de choque em suas memoráveis passeatas de
protesto, promoveram abaixo-assinados pelo retorno dos exilados, pela soltura
de presos políticos vítimas do AI-5 e a legislação repressora, picharam muros
de prédios e equipamentos públicos com palavras de ordem de todo tipo
esquivando-se da polícia em frias madrugadas, e outros tantos esforços humanos,
aqui impossíveis de alinhavá-los em sua riqueza e totalidade. Esse imenso
conjunto de personagens compõe uma legião de incontáveis ‘anônimos’ que, devido
a sua condição social ou relações políticas singulares, não foram guindados a
‘heróis revolucionários’ pelas então conhecidas organizações de esquerda.
De forma alguma pretendo
diminuir o mérito e o papel político daqueles que foram torturados e mortos
pelos órgãos de repressão, mas repor no cenário de então, um ‘outro time’,
aquele que não recebeu reconhecimento algum pelos seus feitos, certamente
também heróicos, embora não pagando com a vida, o exílio, ou as seqüelas
advindas das torturas, pessoas estas que tiveram sua trajetória política
detalhadamente historicizada e foram contempladas, bem ou parcialmente, por
reparações econômicas advindas da ‘lei de reparações’ promulgada em 1995 (
Lei.......).
Já o ‘time dos anônimos’ que
aqui lembrado, a turma menos famosa de todo esse maquiavélico e torturante
enredo, embora sob o tacão de imensa repressão, também sofrendo perseguições de
toda ordem, seja nos locais de estudo, de trabalho ou moradia, tem o seu papel
e heróica história de resistência nesse período, solenemente ignorado pela
Comissão da Verdade. Enquanto ela procura os corpos dos desaparecidos
políticos, não enseja qualquer esforço oficial para procurar os documentos
produzidos pela repressão que assinalavam os movimentos desse imenso ‘time dos
anônimos’, via de regra retratadas nas famosas ‘fichas do DOPS’, tidas como em
grande parte ‘sumidas’, fantasia premeditadamente produzida com vistas a obstaculizar
a reconstituição da verdadeira história da resistência política contra a
ditadura nesse período.
A Comissão da Verdade,
portanto, tem também como tarefa sair a procura dos documentos escondidos pelos
chefes dos órgãos de repressão, para não somente fazer jus a um direito
político tão importante quanto aquele que procura obter um registro de um
cadáver de um militante assassinado pela repressão, como também para propiciar
um entendimento histórico do papel que jogaram esses ‘heróis anônimos’ na sua
brava luta de resistência interna contra a ditadura e na luta pela
democratização a qual hoje vivenciamos em modo metamorfoseado.
Verdade verdadeira só pode existir
se TODOS os atores forem contemplados!
Agosto de 2012, Gert
Schinke, um ‘anônimo’ da resistência à ditadura militar
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